31 oct 2009

Fernando Pessoa (Portugal)

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.

0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.



TABAQUERÍA


Nunca seré nada.
No puedo querer ser nada.
Aparte de esto, tengo en mí todos los sueños del mundo.

Ventanas de mi cuarto,
Cuarto de uno de los millones en el mundo que nadie sabe quién son
(Y si lo supiesen, ¿qué sabrían?)
Ventanas que dan al misterio de una calle cruzada constantemente por la gente,
Calle inaccesible a todos los pensamientos,
Real, imposiblemente real, cierta, desconocidamente cierta,
Con el misterio de las cosas bajo las piedras y los seres,
Con el de la muerte que traza manchas húmedas en las paredes,
Con el del destino que conduce al carro de todo por la calle de nada.
Hoy estoy convencido como si supiese la verdad,
Lúcido como su estuviese por morir
Y no tuviese más hermandad con las cosas que la de una despedida,
Y la hilera de trenes de un convoy desfila frente a mí
Y hay un largo silbido
Dentro de mi cráneo
Y hay una sacudida en mis nervios y crujen mis huesos en la arrancada.

Hoy estoy perplejo, como quien pensó y encontró y olvidó,
Hoy estoy dividido entre la lealtad que debo
A la Tabaquería del otro lado de la calle, como cosa real por fuera,
Y la sensación de que todo es sueño, como cosa real por dentro.

Fallé en todo.
Como no tuve propósito alguno tal vez todo fue nada.
Lo que me enseñaron
Lo eché por la ventana del traspatio.
Ayer fui al campo con grandes propósitos.
Encontré sólo hierbas y árboles
Y la gente que había era igual a la otra.
Dejo la ventana y me siento en una silla. ¿En qué he de pensar?

¿Qué puedo saber de lo que seré, yo que no sé lo que soy?
¿Ser lo que pienso? ¡Pienso ser tantas cosas!
¡Y hay tantos que piensan ser esas mismas cosas que no podemos ser tantos!

¿Genio? En este momento
Cien mil cerebros se creen en sueños genios como yo
Y la historia no recordará, ¿quién sabe?, ni uno,
Y sólo habrá un muladar para tantas futuras conquistas.
No, no creo en mí.
¡En tantos manicomios hay tantos locos con tantas certezas!
Yo, que no tengo ninguna ¿puedo estar en lo cierto?
No, en mí no creo.
¿En cuántas buhardillas y no-buhardillas del mundo
Genios-para-sí-mismos a esta hora están soñando?
¿Cuántas aspiraciones altas y nobles y lúcidas
-Sí, de veras altas y nobles y lúcidas-
Quizá realizables,
No verán nunca la luz del sol real ni llegarán a oídos de la gente?

El mundo es para los que nacieron para conquistarlo
No para los que sueñan que pueden conquistarlo, aunque tengan razón.
He soñado más que todas las hazañas de Napoleón.
He abrazado en mi pecho hipotético más humanidades que Cristo,
He pensado en secreto más filosofías que las escritas por ningún Kant.
Soy y seré siempre el de la buhardilla,
Aunque no viva en ella.
Seré siempre el que no nació para eso.
Seré siempre sólo el que tenía algunas cualidades,
Seré siempre el que aguardó que le abrieran la puerta frente a un muro que no tenía puerta,
El que cantó el cántico del Infinito en un gallinero,
El que oyó la voz de Dios en un pozo cegado.
¿Creer en mí? Ni en mí ni en nada.
Derrame la naturaleza su sol y su lluvia
Sobre mi ardiente cabeza y que su viento me despeine
Y después que venga lo que viniere o tiene que venir o no ha de venir.
Esclavos cardíacos de las estrellas,
Conquistamos al mundo antes de levantarnos de la cama;
Nos despertamos y se vuelve opaco;
Salimos a la calle y se vuelve ajeno,
Es la tierra y el sistema solar y la Vía Láctea y lo Indefinido.

Come chocolates, muchacha,
¡Come chocolates!
Mira que no hay metafísica en el mundo como los chocolates,
Mira que todas las religiones enseñan menos que la confitería.
¡Come, sucia muchacha, come!
¡Si yo pudiese comer chocolates con la misma verdad con que tú los comes!
Pero yo pienso y al arrancar el papel de plata, que es de estaño,
Echo por tierra todo, mi vida misma.)

Queda al menos la amargura de lo que nunca seré,
La caligrafía rápida de estos versos,
Pórtico que mira hacia lo imposible.
Al menos me otorgo a mí mismo un desprecio sin lágrimas,
Noble al menos por el gesto amplio con que arrojo,
Sin prenda, la ropa sucia que soy al tumulto del mundo
Y me quedo en casa sin camisa.

(Tú que consuelas y no existes, y por eso consuelas,
Diosa griega, estatua engendrada viva,
Patricia romana, imposible y nefasta,
Princesa de los trovadores, escotada marquesa del dieciocho,
Cocotte célebre del tiempo de nuestros abuelos,
O no sé cual moderna -no acierto bien la cual-
Sea lo que seas y la que seas, ¡si puedes inspirar, inspírame!
Mi corazón es un balde vacío.
Como invocan espíritus los que invocan espíritus me invoco,
Me invoco a mí mismo y nada aparece.
Me acerco a la ventana y veo la calle con una nitidez absoluta.
Veo las tiendas, la acera, veo los coches que pasan,
Veo los entes vivos vestidos que pasan,
Veo los perros que también existen,
Y todo esto me parece una condena a la degradación
Y todo esto, como todo, me es ajeno.)

Viví, estudié, amé y hasta tuve fe.
Hoy no hay mendigo al que no envidie sólo por ser él y no yo.


En cada uno veo el andrajo, la llaga y la mentira.
Y pienso: tal vez nunca viviste, ni estudiaste, ni amaste, ni creíste
(Porque es posible dar realidad a todo esto sin hacer nada de todo esto.)
Tal vez has existido apenas como la lagartija a la que cortan el rabo
Y el rabo salta, separado del cuerpo.

Hice conmigo lo que no sabía hacer.
Y no hice lo que podía.
El disfraz que me puse no era el mío.
Creyeron que yo era el que no era, no los desmentí y me perdí.
Cuando quise arrancarme la máscara,
La tenía pegada a la cara.
Cuando la arranqué y me vi en el espejo,
Estaba desfigurado.
Estaba borracho, no podía entrar en mi disfraz.
Lo acosté y me quedé afuera,
Dormí en el guardarropa
Como un perro tolerado por la gerencia
Por ser inofensivo.
Voy a escribir este cuento para probar que soy sublime.

Esencia musical de mis versos inútiles,
Quién pudiera encontrarte como cosa que yo hice
Y no encontrarme siempre enfrente de la Tabaquería de enfrente:
Pisan los pies la conciencia de estar existiendo
Como un tapete en el que tropieza un borracho
O la esterilla que se roban los gitanos y que no vale nada.

El Dueño de la Tabaquería aparece en la puerta y se instala contra la puerta.
Con la incomodidad del que tiene el cuello torcido,
Con la incomodidad de un alma torcida, lo veo.
El morirá y yo moriré.

El dejará su rótulo y yo dejaré mis versos.
En un momento dado morirá el rótulo y morirán mis versos.
Después, en otro momento, morirán la calle donde estaba pintado el rótulo
Y el idioma en que fueron escritos los versos.
Después morirá el planeta gigante donde pasó todo esto.
En otros planetas de otros sistemas algo parecido a la gente
Continuará haciendo cosas parecidas a versos,
Parecidas a vivir bajo un rótulo de tienda,
Siempre una cosa frente a otra cosa,
Siempre una cosa tan inútil como la otra,
Siempre lo imposible tan estúpido como lo real,
Siempre el misterio del fondo tan cierto como el misterio de la superficie,
Siempre ésta o aquella cosa o ni una cosa ni la otra.

Un hombre entra a la Tabaquería (¿para comprar tabaco?),
Y la realidad plausible cae de repente sobre mí.
Me enderezo a medias, enérgico, convencido, humano,
Y se me ocurren estos versos en que diré lo contrario.

Enciendo un cigarro al pensar en escribirlos
Y saboreo en el cigarro la libertad de todos los pensamientos.
Fumo y sigo al humo con mi estela,
Y gozo, en un momento sensible y alerta,
La liberación de todas las especulaciones
Y la conciencia de que la metafísica es el resultado de una indisposición.
Y después de esto me reclino en mi silla
Y continúo fumando.
Seguiré fumando hasta que el destino lo quiera.
(Si me casase con la hija de la lavandera
Quizá sería feliz).
Visto esto, me levanto. Me acerco a la ventana.
El hombre sale de la Tabaquería (¿guarda el cambio el la bolsa del pantalón?),
Ah, lo conozco, es Estevez, que ignora la metafísica.
(El Dueño de la Tabaquería aparece en la puerta).
Movido por un instinto adivinatorio, Estevez se vuelve y me reconoce;
Me saluda con la mano y yo le grito ¡Adiós, Estevez! y el universo
Se reconstruye en mí sin ideal ni esperanza y el Dueño de la Tabaquería sonríe.


Traducción: Octavio Paz

No hay comentarios:

Publicar un comentario