3 dic 2011

RONALDO CAGIANO de "O SOL NAS FERIDAS"



ESCAMAS


Havia um amanhecer depois daquele outono.

A vida, em suas estranhas latitudes,
território lisérgico onde dormiam meus fantasmas,
já não é mais o canteiro onde cultivei desilusões

hoje, planeta onde não me escondo,
catapulta-me sobre os abismos.

Quebrei o silêncio dos invernos
com o veto ao deserto absoluto
em que a existência havia se corrompido.

Onde tudo parecia inóspito, inferno,
como um atol de sarças venenosas
agora é sonho que se cristaliza,
habitante provisório
de um mundo sem escamas.

De: “O SOL NAS FERIDAS”, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

RONALDO CAGIANO de "O SOL NAS FERIDAS"

O RITMO DAS COISAS


A poesia traz as coisas para si
e de si as reinventa para a vida.
Joaquim Branco


O tempo
com sua máquina de esquadrinhar
esfarela o museu de ossos
escondido sob a pele fatigada.

O tempo
e seu evangelho de dissoluções
escultor insone
burilando o caminho rumo às Parcas.

O tempo
com sua vigília
sobre os escombros
em que nos transformamos a cada dia.

O tempo
arsenal de punhais
com a lógica taliônica
de uma rude cronologia.

O tempo
(belvedere ou abismo?)
no qual me lanço
para ser absorvido pelo insondável
na peregrinação movediça no vazio.

O tempo
animal invisível
que nos rouba todas as idades
e nos devora
com seu ritual insensato
dentes afiados
como uma nuvem de gafanhotos
devorando nossas córneas.

O tempo
relógio insaciável
anoitecendo os meus olhos.

O tempo
a moenda das horas
impondo o ritmo das coisas.

De: “O SOL NAS FERIDAS”, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

RONALDO CAGIANO de "O SOL NAS FERIDAS"

MARCHA INSONE

... existir é sangrar.
Hildeberto Barbosa Filho


...e havia uma madrugada a vencer
feito Sísifo no aclive interminável:

viver era a pedra renovada
sob os ombros que suportavam
o rigor das punições.

Contra a escuridão
desenhei atalhos de fuga,
quando se insinuava o boicote
ou a avidez da tocaia.

O caminho longo sob os litígios
de um rio imundo
já não é como a pirâmide que desafia
nem a esfinge que devora:

seu coração decifrou para mim
os códigos da batalha

no teatro insone
entre sóis hibernados

e a vida que passava sonâmbula
acordou-me antes da sinfonia dos galos.

Penetrei o vazio,
lago inerte estancando a felicidade,
para reencontrar-me nos mistérios
de um peito
aberto como asas de anjo
ou nas excreções de alguma tristeza
com seus lábios de fogo.

De: “O SOL NAS FERIDAS”, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

RONALDO CAGIANO de "O SOL NAS FERIDAS"

SAAVEDRA, 2111

Na praça invadida pelas brumas de junho
os pássaros buscam na ínfima luz do sol
notícias de um mundo distante.

Enquanto homens solitários
e jovens conduzindo cachorros
emolduram as ruas com um balé de patas
aguardo o poeta
que trará o canto agudo
e na lâmina do verso
explicará a vida.

Em direção a Rafael Calzada
percorri a solidão ferroviária
num trem que penetrava os subúrbios
como um cometa povoado de rostos.

No caminho, meus olhos visitavam
casas geminadas e quintais lindeiros
e nascia uma história fértil
de pomares viçosos
galpões desérticos
e esqueletos de fábricas.

Numa retaguarda de acenos
a estación Constitución
haveria de ensinar outras
lições de partida,

mas quando desci em Adrogué
o amigo me esperava como a uma notícia

e meus braços saudaram a cidade
como a estátua do Redentor à Baía de Guanabara.

No jardim de Nídia Santa Cruz
(ventre semeado de futuros)

a terra anunciava um roseiral
tão belo quanto os girassóis de Van Gogh.

De: “O SOL NAS FERIDAS”, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

Poemas de RONALDO CAGIANO en Español

DE LAS COSAS Y SU RITMO

Cuanto de nós,
é o que não somos?
Ésio Macedo Ribeiro


El sol encendido en mis ojos
hiere la extranjera gestación de los vacíos.

Hay demasiado tiempo en los relojes de la ciudad:
eternidad con sus termitas de acero
atravesando nuestros entrañas
para el triunfo de lo imponderable.

Estamos purgando la existencia
con esas agujas insolentes
condenándonos a un destino de fatigas
o a ningún registro en los obituarios.

Piedra dentro del tiempo,
la muerte, como el molino,
impone el ritmo de las cosas:
pacientemente nos enharina,
granos de nada
en un campo de bacterias.




Ronaldo Cagiano (traducción de Mariano Shifman)
Del libro O SOL NAS FERIDAS, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

Poemas de RONALDO CAGIANO en Español

MARCHA INSOMNE

…existir é sangrar.
Hildeberto Barbosa Filho


… y había una madrugada a vencer
hecho Sísifo en la ascensión interminable:

vivir era una piedra renovada
bajo los hombros que soportaban
el rigor de las puniciones.

Contra la oscuridad
diseñé atajos de fuga,
cuando se insinuaba el boicot
o la avidez de la emboscada.

El camino largo bajo los litigios
de un río inmundo
ya no es como la pirámide que desafía
ni la esfinge que devora:

su corazón descifró para mí
los códigos de la batalla

en el teatro insomne
entre soles hibernados

y la vida que pasaba sonámbula
me despertó antes de la sinfonía de los gallos.

Penetré el vacío,
lago inerte estancando la felicidad,
para reencontrarme en los misterios
de un pecho
abierto como las alas de un ángel
o en las excreciones de alguna tristeza
con sus labios de fuego.


Ronaldo Cagiano (traducción de Mariano Shifman)
Del libro O SOL NAS FERIDAS, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.

Poemas de RONALDO CAGIANO en Español

SAAVEDRA, 2111

En la plaza invadida por la bruma de junio
los pájaros buscan en la ínfima luz del sol
noticias de un mundo distante.

Mientras tanto, hombres solitarios
y jóvenes paseando perros
enmarcan las calles con un ballet de patas
aguardando al poeta
que traerá el canto agudo
y en la lámina del verso
explicará la vida.

En dirección a Rafael Calzada
recorrí la soledad ferroviaria
en un tren que penetraba los suburbios
como un cometa poblado de rostros.

En el camino, mis ojos visitaban
casas simétricas y quintas linderas
y nacía una historia fértil
de campos exuberantes
galpones desérticos
y esqueletos de fábricas.

En una retaguardia de gestos
la Estación Constitución
habría de enseñar otras
lecciones de partida,

mas cuando descendí en Adrogué,
el amigo me esperaba como a una noticia

y mis brazos saludaron la ciudad
como la estatua del Redentor a la Bahía de Guanabara

En el jardín de Nidia Santa Cruz
(vientre sembrado de futuros)

la tierra anunciaba un rosal
tan bello como los girasoles de Van Gogh.


Ronaldo Cagiano (traducción de Mariano Shifman)
Del libro O SOL NAS FERIDAS, Dobra Literatura, São Paulo, 2011.